domingo, janeiro 22, 2012

Da dificuldade em conter a expansão do neoliberalismo (isso que alguns teimam em não saber o que é)


 O actual modo de funcionamento da economia mundial (e hoje existe efectivamente uma economia mundial) juntamente com as elites extraterritoriais que a fazem funcionar favorecem organismos estatais que não podem de facto impor as condições de gestão da economia e, menos ainda, a impor restrições ao modo como aqueles que dirigem a economia entendem fazê-lo: a economia é hoje decididamente transnacional. Virtualmente em todos os Estados, pequenos ou grandes, a maior parte dos meios económicos mais importantes para a vida quotidiana da população são «estrangeiros» - ou, dado que foram removidas todas as barreiras aos movimentos do capital, podem tornar-se estrangeiros de um dia para o outro, caso os governantes locais suponham ingenuamente poder intervir.”

Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada, Ensaio sobre a Moral Pós-Moderna, relógio D’Água. 2007. Pág. 253-254.

***

Bauman escrevia em 1995, há 17 anos portanto, sobre a impotência dos Estados, ou dos “organismos estatais”, na determinação dos rumos da economia, que passou definitivamente a funcionar num quadro que transcende as nações (transnacional). O “modo de funcionamento da economia” a que se refere Bauman em 1995, não podia ser mais actual. Vivemos já a hora em que “a maior parte dos meios económicos mais importantes para a vida quotidiana da população” se tornam estrangeiros, e, poderíamos acrescentar, chineses. Comunistas capitalistas chineses! Os grandes vencedores da Era neoliberal. Trata-se de uma grande ironia. Eles não comem tudo; eles compram tudo! Esta semana foi a vez da Thames Water, a “maior empresa de água e saneamento do Reino Unido” (Público, 21 de Janeiro de 2012, pág. 15) que “abastece 8,8 milhões de consumidores com água e presta serviços de esgotos a cerca de 14 milhões de britânicos, em Londres e regiões próximas”, ter sido comprada em 8,7% pelo fundo de investimento China Investment Corporation. Já antes a Three Gorges tinha comprado 21,3% da EDP. Água, energia, saneamento básico… – “os meios económicos” mais importantes para a vida quotidiana da população”.

A China posiciona-se estrategicamente no campo geopolítico e geoeconómico da globalização. E não sejamos ingénuos: não o faz por altruísmo ou para “ajudar” o pobre Ocidente que até há pouco era rico e colonizador e que agora implora por mais dinheiro. Fá-lo porque procura ganhar uma posição hegemónica na economia e na política mundial. No futuro poderá impor os seus interesses ao mundo: o que fará o Ocidente (ou o mundo) quando a China ameaçar utilizar o embargo financeiro (essa nova arma), caso os seus interesses sejam contrariados, por exemplo, na questão de Taiwan, essa ilha que se segue, após Macau e Hong Kong?


Mas voltemos a Bauman: noutro sentido, o sociólogo assinala a incapacidade dos governos para domarem o capital. O capital escapa-se e torna-se, de um dia para o outro, estrangeiro caso alguns governos, ingenuamente ainda pensem que o podem dominar. Neste caso temos dois exemplos recentes muito claros: ao nível nacional, a deslocalização das sedes fiscais das empresas cotadas em bolsa para a Holanda, visando escapar ao curto braço das Finanças portuguesas; à escala da União Europeia, a incapacidade dos governos imporem uma taxa Tobin, que incida sobre os movimentos de capital. Neste caso, o neoliberal Cameron até tem alguma razão quando considera que tal medida só surte efeito se for tomada de forma concertada a nível mundial. Mas a manha está no facto de ele saber muito bem que, no actual quadro das relações internacionais, isso não é possível, nem nunca o será: os actuais vencedores da globalização jamais o permitirão. Quererão manter sempre o status quo. Contudo, não há eternos vencedores e os que hoje se assumem como tal, amanhã poderão ser os perdedores. A Europa que o diga.

Epílogo

Os governos neoliberais actuais estão longe de ser ingénuos. Pelo contrário, aproveitam o actual modo de funcionamento da economia mundial em favor dos grupos de interesses que representam. E o que fazem, agora que o dinheiro já não pode vir da exploração colonial - da pimenta, do ouro e da prata, do marfim, do tráfico de escravos, etc. –, nem pode vir já dos subsídios comunitários, nem da contracção de crédito a juros baixos? Vendem o que resta vender: o património acumulado do Estado, as empresas e os serviços públicos – enfim, tudo o que ao longo dos anos foi construído com o esforço dos povos.

4 comentários:

  1. Se acrescentar à (excelente) análise a crescente desindustrialização da Europa (e também dos EUA) com a consequente debilitação da classe operária, a única capaz de poder face à situação, podemos imaginar que o campo está aberto para caminhos bem preocupantes... Outro dado: o stock alimentar está nas lonas... e não só em Portugal.

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  2. Caro AMCD,

    Se a China fosse liberal, nunca teria efectuado esses investimentos à escala global.

    Liberalismo é sinónimo de menos Estado e de ausência de intervencionismo do governo na economia.

    Cumprimentos

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Caro David Cruz

    Em parte concordo consigo. A China não é uma democracia liberal, tal qual as conhecemos no Ocidente. Nem eu o refiro no texto. Contudo a China, é sem dúvida o país dos dois sistemas – capitalista e comunista – e pratica um capitalismo de Estado. O geógrafo David Harvey, por exemplo, coloca-a entre os países que praticam uma política neoliberal. Dedica-lhe um capítulo na sua obra - "A Brief History of Neoliberalism". O capítulo intitula-se «Neoliberalism with “Chinese Characteristics”», em que refere que o resultado das reformas introduzidas por Deng Xiaoping levou à “construção de um tipo de economia de mercado muito particular que incorpora de forma crescente elementos neoliberais, interligados com um controlo centralizado autoritário” (pág. 120).

    Referência:
    Harvey, David (2005); A Brief History of Neoliberalism, Oxford University Press.

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