sábado, outubro 27, 2012

As nuvens e a música, em Tavira, nos desertos e no mundo

Tavira                                                                                                                       © AMCD

As nuvens não nos abandonam neste Outono, mas estava uma tarde tranquila nas margens do Gilão. Entre o grasnar das gaivotas soava um clarinete ao longe. Alguém tocava na velha ponte. A caixa do instrumento pousada no chão tinha poucas moedas. À passagem, deitei-lhe uma moeda. Sem a música, a nossa vida nesta “terra devastada” seria insuportável.

«Formam uma constelação interessante [os que nos conseguiram dizer alguma coisa inovadora ou definidora sobre o que é a música]: Agostinho, Rosseau, Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Adorno. Uma escassez selecta. Poderá parecer-nos quase escandalosamente rara no que diz respeito a um fenómeno de uma realidade tão manifesta e universal como a música; a um fenómeno sem o qual, para inúmeros homens e mulheres, esta terra devastada e o nosso trânsito nela seriam provavelmente insuportáveis.»

George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida, Relógio D’Água, 1997, p. 83

Pois sou um desses inúmeros homens de que fala Steiner, que não podem passar neste mundo sem a música. E ele diz mais:

«Diz-nos a antropologia filosófica, nas pessoas de Vico e Rosseau, que a música antecedeu a fala. Os pássaros cantam, bem como possivelmente certos mamíferos marinhos (apesar de só podermos suspeitar, sem termos a certeza, de que as suas canções comunicam significados específicos). Os ventos, as dunas e as rochas podem cantar. Já os ouvi no Negev quando a noite começa a arrefecer.  Schopenhauer afirma que se o nosso universo acabasse, persistiria a música – uma conjectura inconcebível a um nível racional ou empírico.»

                                      George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida, Relógio D’Água, 1997, p. 84

Pois também estou com Schopenhauer: a música já cá estava e por cá ficará, mesmo quando o mundo acabar.

São famosas as canções ouvidas nos desertos. Também hoje, curiosamente, ao chegar a casa, abri um livro volumoso e tropecei por acaso num relato de um viajante, de nome Harry St. John Philby (1885-1960), que contava o que lhe sucedera ao subir uma duna no deserto Rub' al Khali:

«Quite suddenly the great amphitheater began to boom and drone with sound not unlike that of a siren or perhaps an aeroplane engine – quite a musical, rhythmic sound of astonishing depth. The conditions were ideal for the study of the sand concert, and the first item was sufficiently prolonged, perhaps four minutes, for me to take in every detail. The men working at the well started a rival and less musical concert of ribaldry directed at the Djinns (desert spirits) who were supposed to be responsible for the occurrence. »

Harry St John Philby, in Benedict Allen (edit), The Faber Book of Exploration, Faber and Faber, London, 2002, p. 369.

Paradoxalmente, os grandes desertos estão cheios de música e de espíritos, tal como o flamenco que soa nas guitarras espanholas, com o seu espírito voador, que surge sempre quando é tocado ou cantado, possuindo as dançarinas, arrebatando-as para a dança. Olé!

Tavira                                                                                                                           © AMCD

Uma nuvem gigante pairava sobre Tavira, ameaçadora. Passou tranquilamente. Como a tarde.

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