sexta-feira, abril 26, 2013

Um homem é pouca coisa


«A tragédia de um quarto vazio. A tragédia de encher quatro paredes do sentido da nossa intimidade. Mas, afinal, bastou abrir a mala, espalhar pelas cadeiras o pijama e a gabardine, e pôr em cima da mesa a pasta dentífrica e o pente. Com mais um cobertor na cama e duas toalhas limpas, considerei-me aninhado. Um homem é pouca coisa. O tacão da bota ou a direcção da risca do cabelo podem resumi-lo.»

Miguel Torga, Coimbra, 1 de Julho de 1940
Miguel Torga (1967), Diário I, 5ª ed. revista, pág. 154.

***

Não sabia muito acerca de Torga, nem sei. Por isso a leitura do Diário I está a ser uma agradável surpresa. Escuto a voz do Torga. Desilude-se numa viagem à Europa gélida e triste, no Inverno de 1937. “Andar mais era entristecer e desanimar mais ainda”, diz ele, ansioso por regressar à Península, enquanto aguardava na estação de comboio de Bruxelas. A Europa anoitecia e ele, nesse desencanto, já parecia pressenti-lo. Três anos depois ressoariam as botas da tropa alemã, em marcha cadenciada, nos Campos Elísios que ele visitou.

A páginas tantas, dou com o Torga nas prisões. Escreve poemas na cadeia de Leiria e no Aljube, em Lisboa. O Torga na prisão. Que surpresa! O que teria feito? Estaria a dar consultas aos presos, tendo ficado por ali? Não há qualquer alusão no Diário I às razões que o levaram à prisão. Só por outras fontes descubro que esteve mesmo preso por razões políticas. Na prisão, liberta o espírito em poemas. Nada de prosa. Mas sofre. A prová-lo, o seu primeiro poema da prisão escrito no Diário:

«EXORTAÇÃO

Meu irmão na distância, homem
Que nesta cama hás-de sofrer:
Que nem a terra nem o céu te domem;
Nenhuma dor te impeça de viver!»

     Miguel Torga, Cadeia de Leiria, 30 de Novembro de 1939, Diário II, pág. 121.

Muitos outros haveriam de suceder-lhe nas prisões e Torga já lhes antevia o sofrimento, a tortura e a dor. Talvez porque o tenha também sentido na pele. Apelava à indomabilidade, à resistência e à vida dos prisioneiros políticos vindouros. 
Grande Torga!

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Há quem diga que nascemos do pó e ao pó regressamos. Que somos feitos do pó das estrelas. Que somos pequenas nadas. Mas há quem acredite em princípios antrópicos fortes e fracos. Que o universo foi criado por nossa causa, o que não é pouco.

      É fácil neste ponto discordar do Torga: o homem não é, na verdade, pouca coisa, até porque à superfície da Terra não existem, e jamais existiram, dois homens iguais. Cada homem pode encerrar um universo inteiro. Cada ser humano é único. Mas Torga era um humanista.

      No contexto em que o Torga o refere, talvez queira dizer que a um homem pouco basta para se definir como tal. No caso, ele define o homem pelo pequeno universo de objectos que lhe são familiares.

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